Acontece um atentado terrorista na
Europa mais um agora em Nice e as perguntas dos dias seguintes são sempre as
mesmas. Por quê? Como explicar o horror? Quais são as causas? Que fizemos nós
para merecer isso? A ambição subjacente é óbvia: se soubermos as causas podemos
evitar os efeitos.
Existem duas formas de responder a tal
cortejo de ansiedades. O primeiro é denegrir tais dúvidas, caracterizando os
seus autores como ingênuos ou coisa pior. O terrorismo deseja o terror. E,
quando vem embalado por qualquer caução islamita, deseja a morte dos infiéis.
Será assim tão difícil de entender?
Na verdade, é difícil sim. E aqui está
a segunda forma de responder às perguntas: o nosso pensamento progressista (e
racionalista) impede uma compreensão genuína do horror.
Somos filhos do Iluminismo. Acreditamos
que a razão, corretamente exercida, permite sempre uma melhoria moral e
material da sociedade: a derrota do fanatismo; a defesa da tolerância; a
partilha de um espaço público comum; e etc. etc. Os atos dos terroristas são
"irracionais", dizemos nós, porque não se ajustam aos nossos
critérios de racionalidade.
Essa "dissonância cognitiva"
é inevitável. O Iluminismo teve consequências positivas na história dos homens:
o reforço da separação entre o Estado e a Igreja, inexistente no Islã, foi um
deles.
Também teve consequências desastrosas:
se, como dizia Voltaire, o paraíso é onde estamos então nada impede os seres
humanos de procurarem esse paraíso na Terra. Dizer que as consequências dessa
busca foram trágicas no século 20 é, obviamente, um eufemismo.
Só que o "projeto
iluminista", na sua ânsia de defender e aplicar a soberania da razão
humana esqueceu-se de dois viajantes que sempre fizeram parte da história.
O primeiro é a
"contingência", ou seja, a noção de que não é possível controlar tudo
por mera ação humana. Pior ainda: a noção de que podem existir fatores
imponderáveis que subvertem, ou até destroem, as melhores intenções. Essa
ideia, que era pacífica para nossos antepassados, deixou de o ser com a
arrogância racionalista moderna.
O segundo viajante se dá pelo nome de
"ressentimento". A política das boas intenções esqueceu-se do
"homem ressentido", para usar a expressão de Max Scheler
(1874""1928): o sujeito que procura "lá fora" a
justificação para o seu ódio interior. Como escrevia Edmund Burke
(1729""1797) em crítica direta ao otimismo dos
"philosophes": "O poder dos homens viciosos não é algo de
negligente".
Esse poder está à vista: leio a
biografia dos terroristas e, sem exceção, encontro sempre vidas de
ressentimento. Podem ser ressentimentos familiares. Econômicos. Sentimentais.
Sexuais. Ou, na era narcisística em que vivemos, um desprezo pelo exato mundo
que não os reconhece na sua importância ou singularidade.
Idealmente, os homens ressentidos
deveriam ter o anonimato que merecem condenados a tragar o veneno que produzem
para terceiros.
Mas os ressentidos profissionais
encontram sempre uma "filosofia do ressentimento" que os redime.
Exatamente como comunistas e nazistas encontraram no passado.
Essa "filosofia" é também
ela um produto do ressentimento: o radicalismo islâmico propaga uma mensagem de
ódio ao Ocidente, não apenas porque o Ocidente e os seus valores
"liberais" (democracia, pluralismo, liberdade individual etc.) são
odiosos, mas porque, na lógica do ressentido, o Ocidente é o culpado por todas
as falhas de um povo, ou de uma cultura, ou de uma civilização. Lênin e Hitler
poderiam tranquilamente subscrever essa visão.
Deixo as questões securitárias para os
especialistas.
Mas duas conclusões filosóficas
parecem-me fatais.
Para começar, a Europa terá que
conviver com a contingência que tanto se esforçou por ignorar. Por melhores que
sejam os sistemas policiais, nem todo o progresso tecnológico poderá eliminar o
horror do imponderável. O paraíso, definitivamente, não é deste mundo.
Por último, os inimigos das sociedades
livres sempre estiveram dentro delas: falo dos homens ressentidos que usarão
sempre uma desculpa qualquer, o Partido, a Raça, o Profeta– para cometerem as
suas atrocidades.
"Se soubermos as causas podemos
evitar os efeitos?" Lamento. O ressentimento não funciona assim. A sua
vontade de destruição é uma história longa. E será como sempre foi, uma luta
sem fim.
Autor:
João Pereira Coutinho, escritor português, doutor em Ciência Política, escreve
para o Correio da Manhã de Portugal. Publicado em 19/07/2016 na Folha de SP.
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